Sindicato da Construção, Geração, Transmissão e Distribuição

de Energia Elétrica e Gás no Estado de Mato Grosso

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Setor levanta a bandeira das UHEs com reservatórios

UHES COM RESERVATÓRIOS

Em: 13/10/2021 às 09:47h por Canal Energia

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Licenciamento, operação e modelos computacionais precisam mudar para que o país minimize efeitos de crises sequenciais quando ocorre falta de chuvas

 


MAURÍCIO GODOI, DA AGÊNCIA CANALENERGIA, DE SÃO PAULO (SP)


No ditado popular, a crise pode ser encarada como uma oportunidade de debruçar sobre o problema e encontrar soluções para tirar o máximo de eficiência. Isso acontece no mundo corporativo, nas residências das pessoas, entre outros ambientes. A pandemia de covid-19 mostrou em certa medida que essa máxima é real. E a relação entre a crise hídrica e o setor elétrico não foge à regra.


Todo o setor sabe da gravidade desse momento em um país que tem grande dependência de hidrelétricas, mas que há 20 anos deixou de ter usinas com reservatórios. A realidade posta continua no curto prazo, uma vez que não há perspectivas de novas UHEs, mas a discussão sobre os impactos da falta dessa reserva estratégica ganha corpo e pode ser que haja mudanças no futuro.


Apesar de ter perdido espaço para outras fontes como a eólica, solar e até térmicas, as usinas a partir de fonte hídrica ainda são a maior parte de nosso parque gerador e são consideradas estratégicas pelos especialistas por conta de suas características intrínsecas. É bem verdade que saíram de um patamar de cerca de 90% para pouco mais de 60% hoje em dia. Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica, de 1997 até esse momento foram adicionados 53,9 GW em nova capacidade hídrica de um volume acumulado de 116,2 GW de novas usinas nesse período, ou 46,4% do total.


Atualmente, são 109,9 GW da fonte quando se olha para CGHs, PCHs e UHEs. A matriz elétrica nacional soma 194,6 GW entre as usinas com potência outorgada pela Aneel que estão em construção ou em operação. Ou seja a fonte hídrica representa 56,5% do total. Além dessa redução Helvio Guerra, da Aneel da participação geral, uma outra questão levantada é a redução do volume de reservatórios, que saiu de um cenário plurianual para o uso em questão de meses


Há menos de 10 dias a própria Aneel realizou um workshop sobre inventário participativo, onde a retomada de usinas com reservatórios como tema ganhou destaque. Na avaliação de todos os diretores da agência o ponto foi abordado de alguma forma. O mais contundente deles foi Helvio Guerra.


“Nos últimos 30 anos deixamos de lado um dos mais valiosos atributos que é a capacidade de armazenamento. A última usina foi Serra da Mesa nos anos 90. Depois disso, tivemos somente usinas a fio d’água. Passamos de mais de 60% de nossas UHEs com armazenamento, e hoje com 109 GW somente 40% dispõe desses atributos. Essa situação mostrou suas consequências nesse ano”, disse ele. “Não considero essa uma crise hídrica. É, a meu ver, de falta de caixas d’água no sistema, que deixamos de construir. Se tivéssemos aqueles 60%, seguramente não teríamos chamado momentos de escassez hídrica de crise”, avaliou


Em sua análise, se houvesse a combinação já tradicionalmente conhecida no Brasil que une armazenamento de água mais transmissão de energia – em associação às novas fontes de geração – teríamos mais facilidade de suportar a falta de chuvas. E ainda, 2021 mostrou que é necessário enfrentar o desafio de viabilizar novos empreendimentos dessa natureza. A expansão nos últimos anos deu-se sem essa reservação, chamada também de ‘bateria natural do sistema’, e isso trouxe a necessidade de outras fontes com capacidade de serem despacháveis. Nesse contexto, destacam-se notadamente as térmicas


O consultor Armando Ribeiro de Araújo, ressaltou no evento da Aneel a característica variável da eólica e da solar. E sendo assim, não fornecem inércia ao sistema nem resposta rápida à variação de carga. “Isso exige a operação do sistema com fontes despacháveis”, destacou ele, que recentemente publicou artigo aqui no CanalEnergia sobre o planejamento do setor elétrico brasileiro.


“Tomando como base a geração de 2019, as nossas UHEs produziram energia com toda a água que tinham armazenado e mais 90% do que o rio aportou nos reservatórios naquele ano. Ou seja, temos uma operação muito diferente do passado, que era plurianual”, apontou o executivo que passou por alguns dos mais elevados níveis de liderança em empresas como Furnas, Chesf e Eletronorte.


Araújo


relata os efeitos que as usinas estruturantes como Belo Monte, Santo Antonio e Jirau apresentam no SIN. Ele lembrou o fato de que a primeira contribuía com apenas 300 MW, metade de uma de suas turbinas que somam 11.233 MW, em meados de agosto. As duas UHEs do Madeira geram pouco quando tem pouca água ou muita água. Ambas as situações decorrentes da falta de queda para atribuir potência às unidades de geração. Por isso, ele defendeu a reserva de energia que seria alcançada com reservatórios.


Acontece que o potencial de aproveitamentos hidrelétricos no Brasil está concentrado na Amazônia. Segundo a Empresa de Pesquisa Energética, há um remanescente mapeado de 52 GW. Desses, 64% estão naquela região brasileira. E ainda, continuou o presidente da EPE, Thiago Barral, 77% desse volume total alcança de alguma forma terras indígenas e territórios quilombolas. “Isso só considerando usinas acima de 50 MW de potência instalada, sem as PCHs”, descreveu.


Barral da EPE disse que, além de realizar inventários participativos de aproveitamentos novos ou de usinas reversíveis é necessário avaliar os já existentes. Além disso, um ponto importante é estabelecer a agenda regulatória necessária para modernizar esses ativos e usar os estoques de forma mais eficiente e racional. Até porque há o uso múltiplo das águas, riscos climáticos e o nível de aversão com o qual se trabalha para o planejamento. Por isso, defendeu ainda o ajuste do desenho de mercado, preço horário e lógica de compartilhamento de riscos. Para ele, é necessário avaliar os diversos aspectos do uso das UHEs, e o inventário participativo vai na direção correta.


Em entrevista à Agência CanalEnergia, Rafael Kelman, diretor executivo da PSR, lembra que há quase uma censura quando se fala em UHEs com reservatórios, que representam os recursos de melhor alternativa do ponto de vista econômico do país. Ele avalia que é importante ouvir os povos indígenas e incluí-los não só como uma população vulnerável, mas saber seus desejos e, por que não, como sócios em um determinado empreendimento. E cita como exemplo os indígenas na América do Norte, que possuem participação em diversos ativos por lá.


Para Kelman, a fonte hídrica é viável e deve ser aproveitada sim. Ele lembra que a UHE não traz apenas energia, mas a potência que o país precisa. “A hidrelétrica traz tranquilidade para atendimento à ponta, isso só é feito com usinas despacháveis. Além da água, outra fonte que permite isso é a térmica”, comenta ele.


Em geral, o que se ouviu na Aneel é o fato de que o licenciamento ambiental está equivocado em nível federal e em muitos estados. E essa é uma das grandes dificuldades, apesar de existirem exemplos positivos como casos de estados como Goiás, Mato Grosso do Sul ou Paraná.


O presidente executivo do Fórum das Associações do Setor Elétrico, Mário Menel, concorda que há oportunidades no momento de crise. E faz coro ao dizer que uma dessas reavaliações é a de discutir de forma séria e efetiva a retomada das usinas hidrelétricas com reservatórios. Ele exemplifica que se tivéssemos Belo Monte com armazenamento, a usina ajudaria o país ao enviar energia com toda a sua potência em um momento de necessidade. O contrário do verificado recentemente, quando gerou apenas com metade de uma máquina.


“Mandaríamos energia para o Sudeste, onde economizaríamos água preservando os usos múltiplos, como na hidrovia Tietê -Paraná, que está parada”, destaca. Menel lembra ainda do efeito ambiental que essa paralisação traz, pois os grãos passaram a ser transportados via caminhões a diesel. E ainda o econômico, com a paralisação do turismo regional, como no caso de Furnas


Por isso, avalia que a operação com reservatórios deve mudar. O país deve manter os níveis de reservação mais elevados. E que um passo importante para que o país consiga alterar a forma de usar os lagos das usinas se dá pela modernização do marco regulatório no PL 414. No foco do que defende está a revisitação do uso do Newave.


Há um ano o CMSE autorizou a geração térmica fora da ordem de mérito por conta do nível dos reservatórios. Para exemplificar o problema, Menel lembrou que há cerca de 20 dias o CMO estava em R$ 3 mil e caiu para a faixa de R$ 500 quando da entrevista à reportagem.


“Esse é o velho defeito do modelo. Ele olha para frente e a redução desse custo é o comando para usar mais reservatórios porque enxerga que há água chegando. A questão é: e se essa chuva não vem?”, questiona. “A modernização poderia incorporar o modelo de preços por oferta, não precisa de algoritmos para o despacho”, acrescenta.


Modelo defasado


A defasagem e necessidade de modernização do modelo é consenso entre os especialistas ouvidos pela reportagem. Assim como a função dessas usinas no que se refere a seu papel no setor elétrico brasileiro. O diretor executivo da Neal e ex-diretor da agência reguladora, Edvaldo Santana, aponta que além dos impedimentos ambientais, que vem travando o desenvolvimento de novas centrais, há duas questões importantes nessa discussão que não estão sob a mesa.


A primeira é que se tivéssemos reservatórios, ainda assim, seu uso estaria errado e isso por conta do modelo computacional. O outro ponto é a forma de despacho, que deveria se dar por oferta de preços trazendo incentivos aos geradores, diferentemente do que ocorre atualmente.


“Com a política de operação atual, por mais que tenhamos hidrelétricas com reservatórios o resultado seria o mesmo, estaríamos com o mesmo problema com níveis reduzidos. A questão é que não estamos usando bem esse recurso”, afirma Santana. “O problema está no Newave. Há pouco tempo o CMO estava R$ 3 mil o MWh e hoje está em cerca de R$ 426, mesmo com reservatórios zerados em Ilha Solteira e Três Irmãos. Isso significa que para atender ao comando do modelo as térmicas que temos acionadas deveriam, em sua grande maioria, estar desligadas”, exemplifica.


A crítica está centrada na forma como se calcula esse valor. Assim como explicou Menel, o modelo considera mais a perspectiva futura de chuvas do que o volume dos reservatórios. E, mais grave, destaca Santana, não considera as mudanças climáticas


O consultor José Marangon, da MC&E, reforça essa questão. Em um estudo apresentado ainda em 2018 ele conta que o ponto já estava claro, e ainda, que indicou as mudanças a serem consideradas no planejamento do setor para adequação da operação das usinas. Em sua avaliação, e o estudo mostrava isso, o volume de afluências não seria mais o mesmo do passado. “As vazões estão em um outro patamar, mais baixo, e não voltarão mais ao que tínhamos nos anos 60 ou 70”, aponta.


Tanto é assim que, desde outubro de 2020, o governo vem de certa forma ignorando a indicação do Newave e operando as térmicas fora da ordem de mérito. E não somente eles. Marangon revela que tem conversado com agentes que já admitem não confiar mais nos sistemas computacionais. Nem mesmo no mais recente deles, o Dessem, que estabelece o preço semi-horário.


Soluções


Maragon corrobora a avaliação de que a operação das usinas hidrelétricas tem que mudar ante o que se pratica atualmente. Essa alteração envolve, inclusive, até mesmo deixar de aplicar o Newave, cujos dados de entrada levam ao uso dos reservatórios. Ele também cita o problema do sistema de olhar para a chuva do futuro com base no histórico. “Acontece que está vendo errado, aquele volume não acontecerá mais”, reforça


O consultor afirma que a fonte hídrica continua sendo importante no país apesar da queda de participação. Até porque é ela quem pode proporcionar serviços ao setor elétrico como inércia e potência. Itens já indicados por outros especialistas, mas essa interação com o setor elétrico tem que mudar. E isso significa operar com reservatórios em níveis mais elevados do que se busca atualmente. Além disso, as usinas passariam a ser a bateria do nosso sistema ao passo que vemos as renováveis cada vez mais integradas no SIN, conforme ele explica no vídeo abaixo.


Para ele, as hidrelétricas deveriam operar descentralizadamente, por cascata, como, por exemplo, no eixo rio Grande–Paraná, que vai desde Furnas até chegar a Itaipu, onde poderia ser formado um consórcio reunindo todos os geradores para melhor uso da água com base na oferta de preços.


Essa análise vai ao encontro do que afirma Menel, do Fase, e Edvaldo Santana, da Neal. Inclusive o exdiretor da Aneel usa o Canadá e a Noruega como benchmarks dessa atuação. Aliás, ressalta que por aqui seria ainda mais fácil, porque há a obrigação da carga ser contratada. Assim, se o gerador não tem a energia em seu reservatório teria que ir a mercado à vista para recompor os contratos. “Assim, o gerador não tem interesse de esvaziar o reservatório”, diz.


Todavia, Santana avalia que o MRE está desequilibrado e inviável, defende sua extinção, porque representa a falta de estímulo para que o gerador tenha cuidado com a água. Por isso, reitera que o projeto de modernização do setor no PL 414 deveria ser acelerado para cuidar de questões urgentes, como essa


Mas ainda há outros pontos no universo da hidroeletricidade que podem ser abordados para a renovação desse potencial hidráulico no país. Kelman, da PSR, destaca que a idade média das UHEs no país está aumentando, o que abre espaço para repotenciação e modernização das centrais. Só que para isso acontecer é necessário incentivo econômico, que em suas palavras, “foram ceifados com a cotização das usinas e o MRE que tirou todos esses incentivos para que o gerador busque mais potência”.


Segundo ele, o campo de atuação é enorme, e a PSR, inclusive, vem trabalhando em parceria com a GE em uma solução para aplicar inteligência artificial que permita alcançar mais potência de uma unidade de geração, entre outras ações possíveis. Contudo, de uma forma geral ainda há barreiras para a realização dos investimentos por parte dos agentes. Uma delas é a falta de pagamento por potência, remunerar as usinas pelos serviços que são intrínsecos a esses ativos.


“Se o gerador recebesse pela energia média gerada em dez anos, por exemplo, ele buscaria produzir mais e isso seria possível ao melhorar a eficiência da turbina e evitar qualquer desperdício de água. Isso é incentivo na veia. Ele vai mexer na usina e levaria ao comitê de uma determinada bacia proposta para recuperação dos cursos de água e nascentes para a melhoria do volume de água que chegaria na central de geração. Hoje não tem isso, o que há é acomodação”, afirma.


Na opinião de Charles Lenzi, presidente da Abragel, não investir mais em hidrelétricas é um dos maiores erros do país que tem sua matriz entre as mais renováveis do mundo. Ele reforça o coro de que se o Brasil quer a expansão via renováveis intermitentes as UHEs com reservatório servem como a reserva de que precisamos. “É um absurdo. Hoje em dia é mais fácil licenciar térmicas do que hidrelétrica, que tem um ciclo de desenvolvimento na faixa de 15 anos, mas poderia ser metade desse tempo”, descreve ele.


Somente no setor que Lenzi representa, de PCHs e CGHs, há projetos que somam 9 GW em potência instalada já preparados para serem tirados do papel em 600 usinas. E ainda há um potencial adicional já identificado e inventariado de mais 8 GW. “Esse é um volume que equivale ao potencial térmico no país”, compara


Reversíveis


Kelman citou as usinas reversíveis como possível alternativa no país. E essa forma não é vista apenas no Brasil mas em fóruns internacionais. Essas centrais poderiam estar localizadas em regiões estratégicas, não apenas em cursos de rios, como as UHEs tradicionais. Inclusive, a PSR vem estudando em um projeto de P&D com Elera, CTG e EDF, locais onde há essa possibilidade no Brasil. Um dos mais óbvios seria a Serra do Mar. “Essas usinas podem oferecer potência e serviços ancilares, a pegada ambiental é pequena, há várias áreas degradadas e está no meio do principal centro de carga do país”, destaca.


Nesse conjunto de locais, Marangon, da MC&E, acrescenta ainda a Serra da Mantiqueira, que apresenta as mesmas características. Lembra que o Brasil possui um relevo interessante, com alturas razoáveis para essa modalidade. Contudo, ressalta que a função dessas usinas é prover esses serviços de estabilidade ao sistema, uma vez que o volume de energia gerado não é elevado e é mais usado para bombeamento da água de um reservatório a montante para ojusante da barragem.


“Com uma perspectiva de termos linhas de transmissão de corrente contínua do Nordeste para o Sudeste para escoar a energia produzida pela eólica e a solar, é necessário que tenhamos potência e inércia no sistema. Se não houver, teremos um problema de ordem elétrica, de operação da rede”, finaliza.