Galileu Galilei talvez tenha sido o único caso de pessoa perseguida pela Inquisição por ter defendido idéias estritamente científicas, em particular o heliocentrismo. Alguns “cientistas” de sua época consideraram suas descobertas somente ilusões de ótica das lentes de seu telescópio rudimentar.
A Inquisição em 1616 pronunciou-se sobre a Teoria Heliocêntrica afirmando que era herética e que a idéia da terra se mover estava “teologicamente” errada, sem entrar no mérito científico da questão.
O setor elétrico brasileiro construiu aproximadamente 1.000 barragens, algumas com mais de 120 anos em operação. O Brasil consolidou progressivamente em seus projetos as melhores práticas de gestão socioambiental de eficácia comprovadas internacionalmente. Porém, sob a ótica de um falso paradigma da sustentabilidade: se é bom, barato e funciona não é sustentável, os ambientalistas pressionaram (e conseguiram) eliminar a construção de hidrelétricas com reservatórios de regularização plurianual sendo, no máximo, tolerada a construção (com grandes restrições) de reservatórios a fio d´água, com as supostas vantagens de: i) Menor supressão de cobertura vegetal nativa; ii) Menor impacto em áreas especialmente protegidas; iii) Preservação de atributos naturais; iv) Redução da população realocada involuntariamente; v) Menor infraestrutura a ser inundada; vi) Menor interferência nas atividades econômicas; vii) Maior apelo de viabilidade socioeconômica intrínseca aos empreendimentos.
De 1985 até agora, aumentamos a potência instalada em 134%, mas a capacidade de armazenamento em apenas 30%. Porém, foram observadas as seguintes desvantagens: i) Drástica redução da capacidade de armazenamento dos reservatórios das novas hidrelétricas e maior exposição aos riscos do intemperismo e às catástrofes naturais; ii) Redução de área inundada sem redução da potência a ser instalada; iii) Destruição da vantagem comparativa das usinas hidrelétricas em relação às demais fontes; iv) Uso crescente de usinas térmicas convencionais para compensar reduções de vazões em função de menores chuvas; v) Freio à competitividade da cadeia produtiva nacional, com exportação de investimentos, empregos e aumento das importações. A disponibilidade e o preço da energia são fatores fundamentais para nossa competitividade industrial num mundo globalizado (a indústria já representou 25% do PIB, hoje está próxima dos 13% do PIB); e vi) Necessidade de construção usinas adicionais com custos mais altos, tarifas ainda mais elevadas e menor eficiência ambiental global. Em resumo, adoção de políticas públicas (de energia e meio ambiente) não necessariamente convergentes com os interesses nacionais e dos consumidores de energia elétrica.
Ocorre que vivemos uma combinação das anomalias climáticas cíclicas El Niño e La Niña muito rigorosas, que produzem exacerbação dos fenômenos climáticos e desastres naturais e humanitários reais, cuja freqüência e intensidade estão aumentando. As previsões para as conseqüências das mudanças climáticas são catastróficas para os recursos hídricos, com aumento do intemperismo e ocorrências de eventos críticos: tempestades severas, secas, enchentes, chuvas de maior intensidade, ainda que o volume de chuvas não deva aumentar ao longo do ano, aumento da desertificação e restrição de acesso à água potável, condições precárias de vida que resultarão em migrações e refugiados ambientais.
O “hedge” seria a reservação (para amortecer frentes de cheia e estocagem para as secas) cada vez mais mutilada. A hidroeletricidade é limpa, renovável e analisando todo o ciclo de vida dos materiais, equipamentos e serviços envolvidos é uma das que menos contribui para a emissão de Gases de Efeito Estufa.
A defesa da competitividade socioambiental das hidrelétricas compreende entre outras iniciativas: i) Avaliação de impactos sinérgicos e cumulativos da hidroeletricidade na matriz elétrica, na definição de uso da terra e nas prioridades ambientais, assim como objetivos para redução da pobreza e crescimento econômico; ii) Explicitar o papel da hidroeletricidade (com reservação) no suporte ao desenvolvimento de fontes renováveis, tais como eólica e biomassa menos flexíveis na matriz elétrica, portanto não despacháveis; e iii) Reservatórios com regularização (abandono das UHEs a fio d´água) como “seguro” às mudanças climáticas (aumento do intemperismo e ocorrências de eventos críticos) para amortecer frentes de cheia e estocagem para as secas (menor despacho de termelétricas).
Diferentemente de Galileu que não tinha ainda provas científicas conclusivas sobre o sistema heliocêntrico, o Setor Elétrico Brasileiro acumulou nas últimas três décadas, observações, estudos científicos e experiência para defender a necessidade da existência dos reservatórios de regularização em detrimento dos reservatórios a fio d´água. Somos hoje em matéria de conservação e na matriz elétrica o que a maior parte dos países desenvolvidos gostariam de ser amanhã.
Foram necessários 230 anos para que as obras de Galileu fossem excluídas do Index Librorum Prohibitorum e 367 anos para a revisão do seu processo, que decide pela sua absolvição somente em 1983. Não podemos esperar tanto tempo para que os ambientalistas reconheçam a importância e relevância dos reservatórios de regularização na defesa da segurança hídrica e energética do Brasil, bem como os benefícios líquidos positivos dos mesmos sobre os impactos socioambientais no aumento da oferta de energia elétrica quando comparado com outras fontes alternativas.
Reza a lenda que, ao sair do tribunal após sua condenação, Galileu disse uma frase célebre: “Eppur si muove!”, ou seja, “contudo, ela se move”, referindo-se a Terra. Portanto, reservação já!
Decio Michellis Jr é diretor de energia do Departamento de Infraestrutura da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e assessor especial de meio ambiente da Rede Energia