Se consumidores, geradores, transmissores e distribuidores não ajudarem a construir as políticas públicas de energia em conjunto com o parlamento e os demais ministérios relacionados ao problema, serão sempre os ungidos do MME (Ministério de Minas e Energia) e EPE (Empresa de Pesquisa Energética) que as farão sozinhos.
Na verdade, interesses específicos eleitorais, menos republicanos, poderão manter decisões do Palácio do Planalto, frequentemente opacas, sem escuta, tramadas em gabinetes onde meia dúzia de burocratas se arvoram intérpretes do bem e do bom para a Nação brasileira.
São eles coautores, por exemplo, do tsunami de 11 de setembro de 2012, data da publicação da Medida Provisória 579, que arruinou a ordem energética do país, a título de dar kWh barato aos extratos de renda mais baixos da população.
Hoje esses extratos pagam tarifas alpinistas campeãs no mundo. Aliás, são as mesmas autoridades, nas coxias de Brasília ou do Rio de Janeiro, os autores que jogaram no lixo 2 GW ou R$ 10 bilhões de investimentos em nova geração hidrelétrica (em 2012/13). Faleceu o conjunto de projetos reunidos na ABIAPE (Associação Brasileira de Investidores em Auto Produção de Energia), que procuravam se viabilizar desde o período de FHC, governo no qual venceram leilões sob o regime de outorga onerosa.
Na mesma cartografia, há uma década as autoridades vieram desprezando e dificultando, de várias formas, a implantação de mais 10 GW de pequenas centrais hidrelétricas de baixo impacto ambiental, num Brasil carente de investimentos e de energia.
São mais de R$ 70 bilhões em 810 projetos que gerariam 65% de uma nova Itaipu, sem os impactos que a gigante nos causou. Afinal, o lago médio de uma PCH mede 150 hectares, ou menos do que 15 campos de futebol oficial.
Em suas margens, o empreendedor, injustamente tratado como depredador, é dentre as fontes renováveis obrigado a criar uma área de preservação permanente, com espécies nativas de fauna e flora, impedindo a erosão, a ocupação imobiliária irregular, a deposição de lixo, entulhos, esgotos, contribuindo ainda para o controle de cheias, com as frequentes ocorrências fatais que as acompanham.
Apresento esta introdução, caro leitor, para que, sistêmico, possa refletir, de modo coeso e articulado, a política oficial em torno de uma discórdia profunda e relevante para o setor elétrico e o país, que é o tema das garantias físicas das geradoras de energia hidrelétrica.
Na leitura da EPE, por exemplo, as manifestações de associações são descartáveis, embora questionem o âmago das metodologias apenas porque representam interesses específicos.
Ora, e quais seriam os interesses inespecíficos da EPE quando promove, ao seu bel prazer, alegando razões ambientais inespecíficas, o não-aproveitamento do potencial remanescente de 155 GW de energia hidroelétrica brasileira?
E quando ela aprofunda nossa dependência de enormes quantidades de energia gerada com os caros, importados e poluentes diesel e óleo combustível? Ao invés de a oitiva da EPE se debruçar sobre o interesse coletivo, em busca de distintas percepções, ela desfaz, dilui aquele que sacode, que obriga a repensar, mesmo que expresse fração dominante da opinião setorial. Num país sem agenda, de ministros que não falam a mesma língua, nem mesmo todas as instituições de pesquisa dispõem de bússolas fora da exibição de poder.
O que seria da governança sem as associações (das quais se espera ética por serem plurais) que organizem a interlocução da sociedade/governo? Ora, a resposta advém do papel da interlocução efetiva (governo/sociedade) no funcionamento da democracia e da res pública. Sua prática é imprescindível.
Dessa forma, obediente ao limite legal de risco de déficit de 5%, quero tratar da garantia física das geradoras hidrelétricas de todos os tamanhos porque ela está no vórtice da tempestade perfeita do Brasil.
Um modelo físico, sob constante métrica, para basear o cálculo da garantia, válido para cada usina, é desejável. Até então o dimensionamento físico dos reservatórios era essencial, mas um modelo de custo econômico foi adotado depois de 2008. Ele não as elimina por completo e cria mais imprevisibilidades.
Por ora, a meu ver, a segurança da operação e do planejamento, urgentemente, implica em que, com total transparência e aderência à economia real, todos os modelos deveriam ser rodados e precisam convergir (como acontece nas ciências aplicadas da meteorologia, que lidam com milhares de trajetórias de incertezas).
Veja-se que o levantamento batimétrico para apurar o real volume de acumulação de águas dos lagos está atrasado no Brasil há pelo menos uma década. Sente-se falta também da aferição dos impactos de usinas despachadas ou não que exercem influência nas atividades das demais.
A operação obedece a normas exógenas às vazões naturais das bacias hidrográficas. Muitas vezes a navegação, a irrigação, a hotelaria, a pesca, o saneamento prevalecem sobre a variável de energia elétrica.
Por sua vez, cito a expert Leontina Pinto, que critica a metodologia adotada para hidrelétricas com mais de 50MW de potência, depois de 2008: “Não é estabelecida a metodologia de cálculo de custo marginal de expansão ou da tolerância admissível – e a configuração inicial é, em si, incerta. As condições de suprimento futuro são derivadas do passado, que pode não se repetir (e normalmente não se repete). Não são consideradas as variações das usinas não despachadas (eólicas, biomassa, PCHs)…”.
Para pequenas centrais a metodologia é mais simples, porém igualmente carente de aperfeiçoamentos, diz Leontina Pinto. Observe-se que a garantia física é o mínimo de energia que a usina pode entregar, em condições adversas. Para as PCHs, o mínimo sai de uma média de um período histórico mais longo, pois suas vazões são mais incertas. Ela é, em qualquer caso, medida em MWmédios o que supõe no mínimo períodos anuais.
Note-se também que nos últimos dez ou doze anos, em várias regiões do Brasil, em diversas bacias, a geração hidrelétrica tem se situado abaixo da garantia mínima calculada segundo a metodologia da EPE.
Isso motiva sua revisão e reconceituação, remetendo-nos à mesma situação de 1980. É óbvio que não se pode exigir de uma PCH a eterna garantia física, pois ela nada mais é do que uma média histórica abalada pelas mudanças climáticas de curto e médio prazo. Mas há consequências financeiras mortais, como se lerá adiante.
Para o conjunto das usinas hidrelétricas coligadas (na proporção de suas garantias físicas) no condomínio do MRE – mecanismo de realocação de energia, as severidades climáticas, desde 2013/14 criaram um rombo contratual anual superior a R$ 20 bilhões porque o pool produziu cerca de 10% abaixo do mínimo. Quem paga a conta se o governo tem enormes responsabilidades nisso? Por enquanto, o investidor que acreditou e empregou a metodologia ditada pelo MME.
O tempo trabalha contra. É inevitável, portanto, uma solução estrutural, ou seja a veloz e séria, profunda e envolvente nova revisão, em Audiência Pública, da nota técnica da Empresa de Pesquisa Energética EPE-DEE-RE-0099/08 e tudo o que dela derivou na EPE-DEE-RE 0102/08.
Sem essa providência, nada resistirá solidamente no setor elétrico brasileiro. Persistirão as falhas no planejamento, principalmente na expansão. Serão alimentadas novas severidades feitas tempestades. (Canal Energia)